O voto tamanho
XGG de
Dias Toffoli — cuja leitura, na sessão da última quarta-feira, levou quase cinco horas — me fez pensar se o presidente da nossa mais alta Corte não teria sido
"tomado" pelo espírito de
Abelardo
Barbosa, mais conhecido como "
Chacrinha",
que se notabilizou pela frase: "
Eu
não vim para explicar, vim para confundir". Tanto é que a maioria do
togados supremos deixaram a sessão sem entender o que, de fato, seu presidente
quis dizer naquele interminável pregação (talvez a mais longa de toda a história
centenária do
STF).
Sem citar a liminar que concedeu monocraticamente a
Flávio Bolsonaro,
Toffoli acatou o recurso extraordinário do
MP no processo sub-judice, anulando a decisão do
desembargador José Marcos Lunardelli (que havia tornado ilegal o
compartilhamento de dados da
Receita
com o
MP, sem autorização judicial,
na condenação do casal
Hilario e Toyoka
Hashimoto pelo crime de sonegação fiscal), e reafirmou que o
UIF (ex-
Coaf) pode compartilhar relatórios de inteligência financeira, mas
desde que incluam somente informações de movimentações globais das pessoas
físicas ou jurídicas e que não haja “encomenda” contra determinada pessoa. Disse
ainda o nobre ministro que, em relação ao compartilhamento de representações fiscais
da
Receita com o
MP, este deve instaurar uma investigação
ao receber as informações e encaminhar o caso para a Justiça, que, a partir da
instauração da investigação, possa acompanhar todo o desdobramento do caso.
O voto quilométrico surpreendeu a todos, tanto pelo tamanho e
pela linguagem tortuosa quanto por abrir caminho para a retomada do
compartilhamento de dados entre os órgãos de fiscalização e os de investigação.
Mas a cereja do bolo foi tentar convencer a todos de que em momento algum ele, Toffoli, teria impedido que os
inquéritos prosseguissem, atribuindo essa "fake news" a agentes públicos mal intencionados e a órgãos de
imprensa que divulgaram essas informações de forma "terrorista". A
pergunta que fica é: se foi mesmo assim, por que o ministro levou tanto tempo
para se explicar? Se constatou que sua liminar estava sendo usada indevidamente
para lhe atribuir a obstrução das investigações de lavagem de dinheiro e
corrupção, por que, então, não expediu prontamente uma nota oficial ou convocou
uma coletiva para dar conta do "equívoco" e acabar com o “terrorismo”
da imprensa?
No que diz respeito ao hoje senador Flavio
Bolsonaro, sujeito não tão oculto nesse julgamento, a defesa do filho do
presidente alega que o repasse dos dados ao MP sem autorização da Justiça caracterizaria quebra de sigilo, mas
o fato é que a quebra do sigilo fora autorizada pela Justiça, e uma proibição
do uso desses dados significaria impedir ad aeternum a investigação de zero um. Como bem observou um desembargador
do TRF-2 a propósito de
outro assunto, “se tem rabo de jacaré;
couro de jacaré, boca de jacaré, então não pode ser um coelho branco”.
Josias de Souza,
com o humor cáustico que caracteriza seus comentários no Jornal da Gazeta, explicou que o Toffoli se expressou num idioma
muito parecido com o português, só que muito mais confuso: o toffolês. Quem conseguiu ouvir toda a
explanação sem cochilar ficou com a impressão de que ele votou a favor da
imposição de condições para o compartilhamento de dados sigilosos sem
autorização judicial. O ex-Coaf não
poderia entregar aos investigadores senão dados genéricos. Detalhamentos, só
com autorização judicial. A continuidade dos inquéritos congelados desde julho
— o de Flávio Bolsonaro e outras 935
investigações — ficaria condicionada a uma análise caso a caso. As restrições
seriam ainda maiores para a Receita
Federal. Após apalpar os dados enviados pelo Fisco, o MP seria
obrigado a comunicar imediatamente a abertura de uma investigação ao juiz, que
supervisionaria o inquérito.
As explicações soaram claras como a gema. Munidos de todas
as informações transmitidas por Toffoli,
os repórteres tiraram suas próprias confusões e, um tanto constrangidos, cercaram
o orador no início da noite para lhe pedir que trocasse em miúdos o voto que
começara a ler no expediente da manhã. "Em relação ao Coaf, pode sim compartilhar informações",
declarou Toffoli. "Mas ele é uma unidade de inteligência. O
que ele compartilha não pode ser usado como prova. É um meio de obtenção de
prova." Então, não haveria nada de novo sob o Sol, pois a coisa já
funciona exatamente assim. Mais tarde, em novo esforço de tradução do toffolês
para o português, o gabinete de Toffoli
informou que, no caso do Coaf, não
há novas limitações. Como assim? Considerando-se que os relatórios produzidos
pelo órgão não incluem documentos detalhados, poderiam continuar circulando no
formato atual. Se é assim, por que diabos o descongelamento do inquérito contra
Flávio Bolsonaro e os outros 935
dependeriam de análises posteriores? Nada foi dito sobre esse paradoxo.
Em seu voto-latifúndio, Toffoli
disse que o MP não poderia, em hipótese nenhuma, "encomendar relatórios" ao UIF
(novo nome do Coaf). Na tradução do
gabinete, procuradores e promotores podem requisitar complementos de
informações recebidas da unidade de inteligência. Toffoli repetiu várias vezes a expressão "lenda urbana". Fez isso, por exemplo, ao assegurar que o
julgamento iniciado nesta quarta não tem nada a ver com Flávio Bolsonaro, reiterando a doutrina Saci-Pererê ao sustentar que a liminar que concedera em julho, a
pedido da defesa do primogênito do presidente, havia paralisado "poucos
processos".
Faltou explicar por que considera o congelamento de 935 inquéritos pouca coisa. Alguns
ministros esforçaram-se para reprimir uma risadinha enquanto ouviam Toffoli. Com a ironia em riste, um dos
colegas de presidente do Supremo referiu-se ao voto dele como "uma grande homenagem ao Dia da Consciência
Negra." Num flerte com o politicamente incorreto, o ministro declarou:
"O voto do relator foi um autêntico
samba do crioulo doido". Vivo,
Sérgio Porto, o magistral criador do samba, discordaria. Seu crioulo
entoou: "Joaquim José / Que também
é / Da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo / E se elegeu Pedro II".
Não dizia coisa com coisa, mas era taxativo. Dias Toffoli, por
gelatinoso, terá de explicar-se novamente diante dos seus pares, pois vários
deles foram dormir ruminando dúvidas sobre o voto de dimensões amazônicas.
O fato é que Toffoli
começou com dois pés esquerdos a leitura do seu voto. Logo de início, o
presidente do STF produziu duas
pérolas. A primeira: "Aqui não está
em julgamento o senador Flávio Bolsonaro". A segunda: "poucos processos foram paralisados por sua
decisão; seus críticos é que tentaram criar um "clima de terrorismo".
Foi graças a um habeas
corpus da defesa de Flávio Bolsonaro
que Toffoli enfiou o Coaf dentro de
um processo que envolvia apenas a Receita
Federal. Foi por conta do mesmo recurso que Toffoli congelou o inquérito que corre contra o filho do presidente
e outros 935 processos fornidos com dados do Coaf. Toffoli jura que o vínculo do filho do presidente com o processo,
assim como o Saci-Pererê, jamais existiu.
Mas o advogado do zero um estava
presente na sessão da Suprema Corte.
Assim como as autoridades que cuidam dos outros 935 processos travados por Toffoli, o defensor de Flávio Bolsonaro
esfregava as mãos, na perspectiva de que o caso contra seu cliente seria anulado.
Quer dizer: Ao contrário do Saci, o
interesse dos encrencados é real e tem múltiplas pernas. Dependendo da decisão
a ser tomada pelo Supremo, o UIF é
que pode sair do julgamento como uma "lenda urbana", um órgão de
controle mudo e sem pernas.
Atualização: A sessão suprema de ontem foi dedicada integralmente à complementação (ou tentativa de explicação) do voto de Toffoli e ao voto do ministro Alexandre de Moraes. Para os que não sabem, depois do relator, que é o primeiro a votar, os ministros se pronunciam por ordem de antiguidade, do mais recente para o mais antigo. Pelo que se pôde entender do voto de Toffoli — que fica mais difícil de interpretar a cada vez que seu autor tenta explicá-lo —, Moraes, que votou pela validade do compartilhamento de dados financeiros do UIF (antigo Coaf) e da Receita Federal com o Ministério Público sem autorização judicial, teria aberto a divergência, ainda que parcial, levado o placar a 1 a 1. Na sequência, o julgamento foi suspenso, devendo ter prosseguimento na sessão da próxima quarta-feira (27). Considerando que ainda faltam os votos de 9 ministros e que o Judiciário entre em recesso no dia 20 de dezembro, não está afastada a possibilidade de o resultado final ser conhecido somente em fevereiro do ano que vem.