Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta sarney inflação. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta sarney inflação. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

domingo, 17 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — OITAVA PARTE

Insistir no mesmo erro esperando produzir um acerto é um dos melhores exemplos de idiotice conhecidos. Como se sabe, o primeiro passo para alguém sair de um buraco é saber que está nele. E o segundo é parar de cavar. Mas Sarney e seu ministro da Fazenda, Dilson Funaro, pareciam acreditar que um simples decreto poria fim a uma inflação galopante e recolocaria nos trilhos a economia tupiniquim. Como também é sabido, premissas erradas raramente levam a bons resultados.

No dia 28 de fevereiro de 1986 os brasileiros conheceram o funéreo Plano Cruzado. A moeda nacional, que até então era o Cruzeiro, sofreu um corte de três zeros e foi rebatizada como Cruzado. Preços, tarifas públicas e salários foram congelados, levando à queda de produção, que levou ao desabastecimento, que levou ao ágio, que levou à volta da inflação. Greves eclodiam por todo o país. Pecuaristas escondiam os rebanhos, fazendo com que a carne desaparecesse dos açougues (picanha, só no câmbio negro e a peso de ouro), enquanto empresários cobravam ágio e políticos raspavam o tacho do erário para emplacar apaniguados na assembleia nacional constituinte.

ObservaçãoEssa não foi a primeira vez que esse expediente foi utilizado para resgatar a credibilidade do dinheiro brasileiro: ao real, herdado do padrão monetário português e que era mais usado no plural (“réis”, “mirréis”, “contos de réis”), sucedeu o cruzeiro (em 1942), que perdeu os centavos em 1964. O cruzeiro novo foi implementado em 1967 (depois de novo corte de 3 zeros). A moeda perdeu o "novo" em 1970, os centavos em 1984 e de 3 zeros em 1886, quando, como dito, passou a se chamar cruzado. Novo corte de zeros ocorreria em 1989, dando origem ao cruzado novo, que voltou a se chamar cruzeiro em 1990, foi promovido a cruzeiro real em 1993 e, após ter o valor nominal dividido por 2.750, voltou às origens — ou seja, tornou a se chamar real — em 1º de julho de 1994, durante o governo de Itamar Franco (veja a tabela de conversão na imagem que ilustra esta matéria).  

Seis dias depois das eleições de 1986 a dupla dinâmica Sarney & Funaro lançou o Plano Cruzado II, que reeditou os erros anteriores e adicionou mais alguns, como o aumento de impostos, tarifas e preços de produtos e a mudança na forma de cálculo do índice da inflação. Em meio a esse descalabro, CUT e CGT promoveram o maior protesto já visto em Brasília, com direito a saques e depredações. Em fevereiro de 1987, o Brasil anunciou a suspensão unilateral, por prazo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa. Ao comunicar o calote, Sarney exigiu apoio da população: “Nada de traição ao país, sob o pretexto de criticar o governo". A inflação, que já rondava os 15% ao mês, voltou subir — devido, sobretudo, à volta da indexação generalizada, que causava a assim chamada inflação inercial

Funaro pediu o boné e... avisou o PMDB que era candidato à presidência da República. Seu substituto, Luiz Carlos Bresser Pereira, editou o Plano Bresser, que, a exemplo dos prodígios anteriores, resultou em muito peido e pouca bosta. Em 1988, nova troca de comando na Fazenda trouxe Maílson da Nóbrega, que trouxe o Plano Verão, que virou "Plano Veremos" em poucos meses, mais exatamente no momento em que o governo perdeu o controle da inflação.

Nenhum dos choques econômicos do governo Sarney trouxe bons resultados. Os produtos sumiram das prateleiras, os fornecedores passaram a cobrar ágio e a inflação sempre voltava a subir. Entre os 22 postulantes à Presidência na eleição solteira de 1989, nomes como os de Ulysses Guimarães (líder do PMDB), Leonel Brizola (PDT) e Mário Covas (PSDB) foram preteridos pelo eleitorado, que alçou ao segundo turno dois populistas demagogos. Pela direta, Fernando Collor de Mello, o caçador de marajás de araque, e pela esquerda, Luis Inácio Lula da Silva, o desempregado que deu certo, fundador e eterno presidente de honra do partido dos trabalhadores que não trabalham, dos estudantes que não estudam e dos intelectuais que não pensam.

Com a hiperinflação lhe servindo de palanque, Collor derrotou o demiurgo de Garanhuns e tomou posse em 15 de março de 1990, quando a inflação rondava 2.000% ao ano. Desacreditado em impopular, Sarney mudou seu domicílio eleitoral para o recém-criado estado do Amapá — se o tivesse mantido no Maranhão, seu estado natal e reduto político, ele dificilmente teria conquistado uma cadeira no Senado. 

Na véspera da posse, Collor pediu a Sarney que decretasse 3 dias de feriado bancário para dar ao mercado financeiro tempo de se adequar às novas medidas econômicas — que tiveram efeitos imediatos sobre a inflação, mas não tardaram a fazer água, a exemplo dos "planos caracu" (o governo entra com a cara e o povo...) da gestão anterior. O Plano Brasil Novo (ou Plano Collor, para os íntimos), decretado via medida provisória, foi gestado pela ministra Zélia Cardoso de Mello, que seria protagonista de um tórrido affair com o ministro Bernardo Cabral — conhecido como Boto Tucuxi — e desposaria Chico Anysio (que se tornou "o humorista que se casou com a piada"). 

Para reduzir a pressão inflacionária, a sumidade delirante "enxugou" a liquidez do mercado através de um formidável confisco de ativos financeiros (contas-correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos) com bloqueio ao acesso a tudo que excedesse 50 mil cruzados novos (cerca de R$ 5 mil em valores atuais, quantia que a ministra admitiria, mais adiante, ter sido definida de forma aleatória). Os dinheiro retido foi convertido em cruzeiros (como voltou a se chamar a nossa moeda) e restituído 18 meses depois aos correntistas e investidores, em 12 parcelas mensais corrigidas e acrescidas de juros de 6% a.a., mas isso não evitou que uma brutal recessão (o PIB encolheu 4,5% em 1990) implicasse um aumento significativo no número de falências, infartos e suicídios.  

Entre os aspectos positivos do governo Collor, cito o início do processo de desestatização e a abertura comercial do país, que se deu com o fim da reserva de mercado e a redução gradual das tarifas de importação. Mas lembro que, durante a campanha, o candidato do PRN e sua equipe de lunáticos jamais revelaram suas desairosas intenções. O caçador de marajás de fancaria prometia acabar com a inflação e melhorar a economia, mas dizia que o faria através do combate à corrupção e da demissão de maus funcionários públicos.

Resumo da ópera: O Plano Collor I foi um fiasco, e sua versão 2.0 não foi muito melhor, pois aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros). Alguns economistas chegaram a dizer que o Brasil havia quebrado, pois os créditos ficaram mais caros e difíceis de obter. Isso sem mencionar que a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu substancialmente, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura.

Depois de míseros e miseráveis 5 meses, o Plano Collor II foi substituído pelo Plano Marcílio — assim chamado em "homenagem" ao economista Marcílio Marques Moreira, que sucedeu a Zélia como ministro da Fazenda. Em outubro de 1992, quatro dias antes de Collor ser afastado, Marcílio deixou o Ministério da Fazenda, que passou para o comando de Gustavo Krause

Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real — lançado em julho de 1994, já na gestão de Itamar Franco e com Fernando Henrique Cardoso como dublê de ministro da Fazenda e primeiro-ministro informal — a inflação oscilou bastante, mas baixou dos 2.000% — patamar em que estava quando Collor assumiu — para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1229, quando o caçador de Marajás de fancaria deixou o Planalto pela porta dos fundos. 

Fernando Collor foi acusado de corrupção pelo irmão, Pedro, que, segundo se comentou na época, jogou merda no ventilador porque queria uma parte maior do butim e não foi atendido. Mas há quem diga que o furdunço foi deflagrado porque Fernandinho arrastou a asa para a cunhada Thereza (que, convenhamos, era muito mais atraente que a insossa primeira-dama).

Ao longo dos quatro meses que o processo de impeachment levou para ser instaurado e julgado, o autodeclarado homem macho de colhão roxo descobriu que a mão que afaga é a mesma que apedreja. Desgostosa com a petulância e o despreparo da equipe collorida — um bando de jagunços comandados por um mandatário investido da aura de salvador da pátria, mas que exsudava arrogância por todos os poros —, a opinião pública protagonizou uma verdadeira caça às bruxas. 

O clima de linchamento propiciou o afloramento dos sentimentos mais mesquinhos. Novos escândalos surgiam diuturnamente, como se não bastasse a mera exposição de um amplo esquema de propinas. Um dia era o Fernandinho do pó, no outro era o sujeito que fazia macumbas no porão da Casa da Dinda, que cantou a cunhada, que era maníaco-depressivo e que ficava em estado catatônico e precisava receber remédio na boca

Como diz o ditado, cada qual colhe o que planta, e quem semeia ventos colhe tempestades.

Continua...

domingo, 8 de janeiro de 2017

AINDA SOBRE O PERIGOSO SAUDOSISMO


Ontem, na abertura desta sequência, eu falei brevemente sobre o golpe de 1964, a ditadura militar, o processo de redemocratização do país, a campanha pelas Diretas Já, a eleição (indireta) do primeiro presidente civil após 21 anos e a posse do vice, José Sarney, devido à morte de Tancredo ― consequência de uma diverticulite aguda, embora não faltem teorias da conspiração que defendem outras versões). Disse também que se cogitou a possibilidade de Ulysses Guimarães assumir a presidência ― até porque ele havia sido indicado pelo PMDB para disputar com Maluf os votos do Colégio Eleitoral ―, mas o político paulista acabou preterido pela coligação PMDB/PFL, com o mineiro Tancredo candidato a presidente e o maranhense Sarney a vice. Mesmo assim, o Sr. Diretas ― como Ulysses ficou conhecido ― teve um papel preponderante na Nova República, sobretudo na liderança da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou nossa Carta Magna de 1988 ―, até um trágico acidente de helicóptero, em 12 de outubro de 1992, pôr fim à carreira e à existência desse ícone da política tupiniquim (e dar margem a mais teorias da conspiração).

Observação: A Constituição Cidadã não foi exatamente uma pérola jurídica, como comprovam dezenas de emendas incorporadas ao texto nos anos subsequentes e a necessidade premente de reformas ― como a Política, a Trabalhista, a Tributária e a Previdenciária ― que nenhum presidente teve peito para fazer (com a possível exceção de Temer, que já conseguiu promulgar a PEC do teto dos gastos, mas isso é outra conversa). Aliás, ao discursar durante a promulgação da nova Constituição, o próprio Ulysses reconheceu as imperfeições da Lei, que contribuíram para elevar a carga tributária dos 22,4% do PIB, em 1988, aos atuais 36%, como forma de sustentar as novas obrigações do Estado (direitos básicos de cidadania, como educação, previdência social, maternidade e infância).

Retomando o fio da meada: Embora houvesse apoiado o regime militar e votado contra a emenda Dante de Oliveira (detalhes no capítulo anterior), Sarney procurou cumprir as promessas de campanha ― aliás, foi a partir do seu governo que os prefeitos dos municípios voltaram a ser escolhidos pelo voto popular. Mas faltavam-lhe o carisma e o traquejo administrativo da velha raposa mineira, e, para piorar, ele herdou dos 21 anos de ditadura um país arruinado, com inflação, desemprego e dívida externa nas alturas.

No início de 1986, Sarney implantou o primeiro de seus muitos “pacotes econômicos”, que ficou conhecido como Plano Cruzado. Nossa moeda, que até então era o cruzeiro, sofreu um corte de 3 zeros e foi rebatizada com o nome de cruzado, e tanto os preços quanto os salários foram congelados. Todavia, faltou a equipe econômica combinar o jogo com o “dragão da inflação”, que ignorou solenemente o decreto presidencial ― aqui entre nós, será que Sarney e o então ministro da Fazenda Dilson Funaro acreditavam mesmo que cortar 3 zeros, mudar o nome da moeda e congelar preços e salários e extinguir a correção monetária seria suficiente para extirpar o câncer inflacionário?

Observação: Essa não foi a primeira vez que se utilizou esse expediente para resgatar a credibilidade do dinheiro brasileiro: do real, herdado do padrão monetário português e que era mais usado no plural (“réis”, “mirréis”, “contos de réis”), passamos ao cruzeiro em 1942, que perdeu os centavos em 1964, ao cruzeiro novo em 1967 (depois de novo corte de 3 zeros) e voltamos ao cruzeiro em 1970. Em 1984, suprimiram-se os centavos, e dois anos depois, após novo corte de 3 zeros, a moeda passou a se chamar cruzado. Novo corte de zeros ocorreria em 1989, dando origem ao cruzado novo, que voltou a se chamar cruzeiro em 1990, foi promovido a cruzeiro real em 1993 e, após ter o valor nominal dividido por 2.750, voltou às origens, ou seja, tornou a se chamar real em 1º de julho de 1994, durante o governo de Itamar Franco (veja a tabela de conversão na imagem que ilustra esta matéria).     

O Plano Cruzado fez água em poucos meses, embora a população tenha apoiado a iniciativa do governo (o que faz o desespero, não é mesmo?), fiscalizado os aumentos e denunciado as remarcações de preços. Mas a euforia durou pouco: os produtos sumiram das prateleiras, os fornecedores passaram a cobrar ágio e a inflação voltou a subir. Sarney e seus notáveis responderam com outros “choques econômicos”, como os planos Cruzado II, Bresser e Verão, mas nenhum deles vingou. Depois de reinar por 5 anos (pois é, Sarney garantiu que a “Constituição Cidadã” estendesse de 4 para 5 anos a duração de seu mandato), o bode velho passou a faixa para Fernando Collor de Melo ― esse, sim, o primeiro presidente pós-ditadura eleito pelo voto popular. E deu no que deu.

Observação: No final de 1989, havia 22 candidatos à Presidência da Banânia, dentre os quais Ulysses Guimarães (líder do PMDB), Paulo Maluf (do PDS), Leonel Brizola (PDT), Mário Covas (PSDB) e o apresentador Silvio Santos, que acabou tendo a candidatura impugnada pelo TSE, por irregularidades no registro partidário. Mas os principais postulantes ao cargo acabaram sendo Collor, do nanico PRN, e Lula, do PT.

Collor derrotou Lula no segundo turno e herdou de Sarney um país com uma inflação de quase 2.000% ao ano. Um dia depois da posse, a pretexto de dar “o tiro certeiro no dragão da inflação”, o marajá caçador de marajás anunciou o Plano Brasil novo (ou Plano Collor, para os íntimos). Na concepção de sua equipe, capitaneada pela ministra Zélia Cardoso de Mello ― que, mais adiante, se casaria com Chico Anysio, que por seu turno, ficaria conhecido como “o humorista que casou com a piada” ―, conter a pressão inflacionária exigia reduzir a quantidade de dinheiro em circulação. Para tanto, o governo confiscou as economias dos brasileiros, bloqueando o acesso a tudo que excedesse 50 mil cruzados novos, tanto nas contas correntes quanto nas cadernetas de popança e outros investimentos. A moeda voltou a se chamar cruzeiro, mas os cruzados novos retidos continuaram a existir e foram devolvidos, mas em 12 parcelas, já na moeda nova, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de 6% a.a. ― o que acarretou perdas substanciais e provocou um aumento significativo nas taxas de suicídio. Do ponto de vista prático, todavia o Plano Collor serviu apenas para gerar uma brutal recessão (para se ter uma ideia, o PIB encolheu 4,5% no primeiro ano de seu governo).

Observação: Em valores atuais, os NCz$ 50 mil correspondem a R$ 5 mil ― quantia que Zélia admitiu, mais adiante, ter sido escolhida de forma aleatória (segundo alguns, por sorteio).   

O governo do hoje senador por Alagoas teve aspectos positivos, dentre os quais o início do processo de desestatização e a abertura comercial do país, com o fim da reserva de mercado e a redução gradual das tarifas de importação, Como eu costumo dizer, se não fosse por ele, talvez a gente ainda dirigisse “carroças” como as que eram fabricadas aqui nos 70 e 80, embora pagasse por elas preços de automóvel de primeiro mundo. Um bom exemplo é o Galaxie Standard ― versão empobrecida do luxuoso Landau, lançada pela Ford no início dos anos 1970 para fazer frente a concorrentes como o Opala, da GM, e o Dodge Dart, da Chrysler. Atualizado pelo IGP-DI/FGV, o preço daquela “carroça”, que era de NCr$ 25.950, corresponde atualmente a R$ 160 mil.    

Hoje, comparado ao petrolão, o “Esquema PC” ― que embasou o processo de impeachment contra Collor ― parece coisa de ladrão de galinha, de bandido pé-de-chinelo, mas levou o marajá dos marajás a renunciar, visando evitar a cassação de seus direitos políticos. Todavia, o Congresso julgou-o assim mesmo, e Collor ficou inelegível por 8 anos. Paulo César (PC) Farias, seu amigo pessoal e tesoureiro de campanha, morreu assassinado poucos anos depois, o que até hoje dá margem a diversas teorias da conspiração (eu, particularmente, acredito em “queima de arquivo”, mas até aí...). Com a deposição de Collor, Itamar Franco, que já era presidente interino desde 2 de outubro, foi efetivado no cargo. Mas isso já é conversa para a próxima postagem. Abraços e até lá.

Confira minhas atualizações diárias sobre política em www.cenario-politico-tupiniquim.link.blog.br/

domingo, 19 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL



O habito não faz o monge nem a faixa, o presidente. Há que haver conteúdo sob ou por detrás desses adereços indumentários. Notadamente o enfeite tiracolar transferido pelo ex-presidente a seu sucessor na cerimônia de posse — que, desde os idos de 1972, acontece sempre no dia 1º de janeiro do ano subsequente ao da eleição e tem início na Catedral de Brasília, a despeito do inciso VI do artigo 5º da Constituição. Coisas do Brasil.

Depois de desfilar no Rolls Royce Presidencial até o prédio do Congresso Nacional, Bolsonaro assinou o termo de posse, jurou "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil" e recebeu de Michel Temer a faixa presidencial.

Bolsonaro jamais leu a Constituição que jurou defender e, como o escorpião da fábula, é incapaz de contrariar a própria natureza. Apesar de reconhecer que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar, foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou sendo absolvido das acusações pelo STM). No ano seguinte, elegeu-se vereador e depois deputado federal por sete mandatos consecutivos, ao longo dos quais aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais. Em 2018, foi alçado à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores, entre os quais um mal explicado atentado que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG). 

Bolsonaro disputa com Dilma — o poste com que Lula empalou os brasileiros em 2010 — o título de pior mandatário desde a redemocratização (e não por falta de concorrentes de peso). Com a autoridade de quem sabe das coisas, o general Ernesto Beckmann Geisel — penúltimo presidente da ditadura e mentor intelectual da reabertura política lenta, gradual e segura — definiu o então capitão da ativa comoum caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”.

O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo (povo que, segundo ele, "não sabe nem escovar os dentes, quanto mais votar para presidente"), negou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney (faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor). Coisas do Brasil.

A título de contextualização, vale lembrar que a Revolução de 1964 — cuja data “comemorativa” é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, por líderes civis e militares conservadores, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário. Coisas do Brasil.

O desgaste do governo propiciou a vitória de Tancredo Neves em um colégio eleitoral — por 480 votos contra 180, a raposa mineira derrotou Paulo Maluf (que era apoiado pelos militares) depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal — formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. 

Em janeiro de 1985, o deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Mas Tancredo foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia e teve o óbito declarado 38 dias e sete cirurgias depois — ironicamente, no feriado de 21 de abril, data em que o Brasil homenageia Tiradentes, o mártir da independência. Coisas do destino.

Tancredo levou para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, mas deixou de herança um neto que  envergonharia o país e um mix de oligarca maranhense, escritor, poeta e acadêmico chamado José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido como “Zé do Sarney”. A possibilidade de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ser guindado ao Palácio do Planalto chegou a ser cogitada, mas prevaleceu o entendimento de que caberia a José Sarney, vice na chapa de Tancredo e rebotalho do coronelismo nordestino, assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Observação: A origem da alcunha — que o político maranhense usava para fins eleitorais desde 1958 e acabou incorporando oficialmente em 1964 — é atribuída ao fato de seu ter sido batizado Sarney de Araújo Costa em homenagem a um inglês de conhecido como Sir Ney, em cuja fazenda ele nasceu. Coisas do Maranhão.

Fisiologista como poucos e puxa-saco de carteirinha dos poderosos de plantão, Sarney (o filho) sobreviveu à ditadura, mas sua infausta gestão à frente da Presidência foi marcada pela hiperinflação. Tanto o Plano Cruzado quanto os "pacotes econômicos" que se lhe sucederam foram baseados no congelamento de preços e salários, e da feita que repetir o mesmo erro várias vezes esperando produzir um acerto é a melhor definição de idiotice que eu conheço, não causou estranheza o fato de todos fazerem água em questão de meses. 

Em 20 de fevereiro de 1987, pressionado pela queda nas reservas cambiais, Sarney fez um pronunciamento em rede nacional anunciando a suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa — evitando usar a palavra "moratória", como se isso produzisse algum resultado positivo (ou menos negativo) na medida adotada. Coisas do Brasil.

Sarney deixou a Presidência com a popularidade em patamares abissais, tanto que transferiu seu domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá, pelo qual teria chances de conseguir uma vaga no Senado. Como era esperado, seus adversários impugnaram se insurgiram contra o cambalacho, mas o STF o avalizou. Conta-se que o ministro Celso de Mello, que teve os ombros recobertos pela suprema toga graças ao oligarca maranhense, votou pela impugnação da candidatura do benfeitor. 

O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos quis saber por quê. Mello respondeu que a Folha havia publicado que Sarney tinha os votos certos de vários ministros e citara seu nome como um deles. "E você votou contra porque a Folha noticiou que votaria a favor?", perguntou Saulo. "Exatamente", respondeu Mello. E Saulo: "Então você é um juiz de merda!"

Sarney deixou a vida pública em 2014, aos 83 anos, a pretexto de se dedicar à literatura em tempo integral. Conta-se que, após um dilúvio assolar o Maranhão, a então governadora Roseana Sarney — filha do macróbio — telefonou ao pai para informar que metade do Estado estava debaixo d’água. Sarney perguntou-lhe candidamente: "A sua metade ou a minha?

Nas eleições gerais de 2018, os pimpolhos do velho cacique maranhense foram penalizados na urnas: nem Zequinha se reelegeu deputado, nem Roseana — que governou o Maranhão por quatro legislaturas desde 1995 — conseguiu desbancar o pecedebista Flavio Dino — que se reelegeu governador com 59,29% dos votos válidos.

Como dito parágrafos acima, Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial a Sarney. Não foi o primeiro nem o único caso na história republicana do Brasil. Coisa de país de terceiro mundo? Não necessariamente. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump, ídolo e muso inspirador do capitão-cloroquina, não só deu trabalho para ser desencalacrado do cargo como não compareceu à cerimônia de posse de Joe Biden, o que representa uma quebra de protocolo na tradição democrática americana, mas, como dito, encontra apoio na ala conservadora da política brasileira.

Na história do Brasil, o exemplo mais recente de um chefe do Executivo que se recusou a comparecer à posse de seu sucessor foi Figueiredo, conforme já foi dito nesta postagem. Sobre Sarney, o general disse à revista IstoÉ, pouco antes de sua morte, em 1999: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A quebra de protocolo em Brasília foi relembrada pelo neto do general, minutos depois de o presidente americano anunciar que não compareceria à posse do sucessor. "Meu avô também não compareceu à posse de seu sucessor, que chegava ao poder de forma ilegítima. Agiu conforme suas convicções. Assim devem fazer os homens de caráter!", postou no Twitter o empresário Paulo Figueiredo Filho. Coisas do Brasil.

Figueiredo não foi o único a se recusar a cumprir os ritos de transição no Brasil. A República ainda engatinhava quando Floriano Peixoto, que governou de 1891 a 1894, decidiu não comparecer à posse de Prudente de Morais porque não via com bons olhos a chegada de um civil ao poder. Afonso Pena também não passou a faixa a seu sucessor, Nilo Peçanha (e nem poderia, porque Nilo era vice de Pena, a quem substituir em virtude de sua morte, em 1909). Em 1954, Café Filho viu-se presidente do dia para a noite e começou a governar o país sem a bênção de seu antecessor, Getúlio Vargas, que "foi suicidado" com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.

Após o impasse entre Figueiredo e Sarney, somente dois presidentes eleitos diretamente (FHC e Lulareceberam e passaram a faixa a seus sucessores. O primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar — o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello — recebeu a faixa de Sarney em março de 1990, mas renunciou ao mandato em dezembro de 1992 (e foi impichado mesmo assim, de modo que não passou a faixa a Itamar Franco).

Itamar, por sua vez, tomou posse em uma cerimônia breve e só usou a faixa presidencial no último de seus dois anos e três dias de governo, quando a colocou sobre os ombros de FHC. O tucano, presidente por dois mandatos, cumpriu o mesmo protocolo na posse de Lula, em 2003. Oito anos depois, foi a vez de Dilma ser destituída em um processo de impeachment — e não comparecer à posse de Michel Temer. Em janeiro de 2019, o vampiro do Jaburú repassou a faixa ao mandatário de fancaria que, por mal de nossos pecados, diz que "só Deus o tira da cadeira presidencial". Coisas do Brasil.

Bolsonaro na presidência era tudo de que o os brasileiros não precisavam, mas tornou-se a única alternativa válida depois que o ilustríssimo eleitorado tupiniquim o escalou para enfrentar o bonifrate do presidiário de Curitiba no segundo turno do pleito de 2018. Voltando à paráfrase de Bolsonaro a uma fala de Figueiredo, “plagiar é, implicitamente, admirar”, como bem disse o intelectual lusitano Júlio Dantas. Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por que Bolsonaro fez da reeleição seu projeto de governo?

"Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia, durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”. Eis a promessa mais sincera e verdadeira feita pelo então candidato, como salientou o ex-delegado federal Jorge Pontes num artigo publicado em Veja. "Teremos um lapso de quatro anos praticamente jogados fora, destinados apenas à pavimentação de mais um — improvável — mandato presidencial", profetizou o policial, em agosto do ano passado.

Assim, graças à verdadeira herança maldita deixada pelo grão-duque do Tucanistão, assistimos a um mandatário eleito com juras de grandes mudanças e discursos anti-establishment emular Dilma, a inesquecível, e fazer o diabo para se reeleger.

A vitória de Bolsonaro foi um caso clássico de emenda pior que o soneto. Embora seja preferível acender a vela a amaldiçoar a escuridão, unir forças com os sectários do bolsonarismo boçal para evitar a volta da cleptocracia lulopetista foi como libertar da garrafa um gênio malfazejo e não saber como prendê-lo de volta. E urge fazê-lo, pois o Brasil dificilmente sobreviverá a mais cinco anos sob o descomando desse mafarrico.  

Segundo a revista eletrônica Crusoé, o presidente de fato desta banânia (falo do centrista Ciro Nogueira) disse a um empresário que Bolsonaro está "cada vez mais mercurial e incontrolável". O diagnóstico perturbador do ministro recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Embora estejam bem servidos em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que que o chefe do Executivo de festim lhes entregou a chave do cofre, a centralhada já entendeu que a aliança tem prazo de validade, e que esse prazo não é longo. Para as marafonas do parlamento, Bolsonaro é um político fadado ao infortúnio, seja pelo impeachment, pela cassação no TST ou derrota nas urnas. E convenhamos que não é preciso ser nenhum "Nostradamus" para fazer tal previsão.

Ainda segundo a reportagem, depois que o desembarque do governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o Centrão, o presidente pato-manco enviou pelo líder do governo na Câmara — o ilibadíssimo Ricardo Barros, a quem o senador Omar Aziz, relator da CPI do Genocídio, se refere como responsável por um balcão de negócios com o Congresso que está a todo vapor — o recado de que continua em pé o esforço para conter possíveis defecções em sua base de apoio.

Entrementes, a despeito da carestia, a inflação oficial segue acima do esperado. O IPCA, medido pelo IBGE, acelerou para 9,68% no acumulado em 12 meses, levando a uma onda de revisões entre os economistas. Na segunda-feira, 13, o Boletim Focus, do Banco Central, registrou a 23ª alta consecutiva da mediana das projeções para o IPCA no fim de 2021, que agora está em 8%. Mas isso é assunto para uma próxima postagem.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A MALDIÇÃO DA VICE-PRESIDÊNCIA — TERCEIRA PARTE

Sarney sempre foi um cacique da velha da política de cabresto nordestina, e só sobreviveu à ditadura porque se resignou a lamber as botas dos militares. A despeito dessa vassalagem, o último presidente-general da ditadura — que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo e "daria um tiro no coco" se fosse criança e seu pai ganhasse salário-mínimo — se recusou a lhe transferir a faixa: faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor.

Observação: Anos depois, referindo-se ao político maranhense numa entrevista concedida à revista IstoÉ, also sprach Zaratustra, digo, assim disse Figueiredo: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A despeito de o "milagre econômico brasileiro" ser cantado em prosa e verso pelos saudosistas de plantão, Sarney herdou dos militares um país arrasado, com recessão, inflação, desemprego e dívida externa nas alturas. Todos os "pacotes de medidas econômicas" elucubrados durante sua gestão (por Dílson Funaro, Bresser Pereira e Maílson da Nóbrega) fizeram água numa questão de meses. 

Aos trancos e barrancos, o oligarca nordestino terminou o mandato (de 5 anos, sem direito a reeleição), mas deixou de herança a seu sucessor uma inflação que beirava 2000% ao ano. Tamanha era sua impopularidade ao deixar o governo que, para disputar uma cadeira de senador, Sarney teve de mudar o domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá. 

Observação: O literato, acadêmico e político maranhense se aposentou da vida pública em 2014, aos 83 anos. Conta-se que certa vez, depois que um dilúvio assolou seu Estado natal, a então governadora Roseana Sarney telefonou ao pai para dizer que "metade do Maranhão estava debaixo d’água", e Sarney teria perguntado: "A sua ou a minha?

No apagar das luzes da desditosa gestão de Sarney, a récua de muares a que se convencionou chamar de "eleitorado", já então sob a égide de uma Constituição estalando de nova, foi às urnas pela primeira vez desde 1960 para escolher seu presidente. 

Disputaram a chamada "eleição solteira de 1989" nada menos que  22 candidatos, entre os quais figuravam monstros sagrados da política tupiniquim, como Ulysses Guimarães e Mário Covas. Graças ao dedo podre dos apedeutas votantes, o segundo turno reuniu o que havia (e continua havendo) de pior em termos de populismo e demagogia sórdida. Ao fim e ao cabo, o sacripanta de direita venceu o salafrário de esquerda.

Como dito linhas acima, naquela época o mandato presidencial era de 5 anos, sem direito a reeleição. Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca termine: em 1997, um FHC picado pela mosca azul usou e abusou de meios não exatamente ilibados — embora não inusitados à luz de como funciona a política no Brasil — para alterar a Constituição de maneira a implementar a reeleição de presidente e vice-presidente (apenas uma vez para um mandato subsequente, mas sem restrição para um pleito não consecutivo).

Como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte, o tucano de plumas vistosas fruiu do desserviço que ele e seus cupinchas prestaram à Nação, mas também abriu espaço para o projeto de poder lulopetista, que durou exatos 13 anos, 4 meses e 11 dias (considerando os dois mandatos do ex-presidiário e os 5 anos e fumaça durante os quais sua sucessora incompetenta "fez o diabo" para destruir a economia nacional).

O Brasil daria um grande passo se aprovasse o fim da reeleição. A proposta de emenda constitucional está pronta para ser votada pelo Senado, mas é difícil construir esse tipo de ajuste quando todos os adversários do sultão do bananistão querem vencer a disputa em 2022. Como a política permite todos os tipos de sonhos, alguns já se enxergam eleitos e fazem planos para 2026, parecendo não se dar conta de que, por pior que seja o atual governo, o general da banda, aboletado na cadeira da Presidência, goza de uma situação mais confortável que a dos adversários.

Com a chave do cofre nas mãos e dois mandachuvas do Centrão lhe dando respaldo (por motivos que não vem ao caso discutir neste momento), o inferno é o limite para o capetão-negação exacerbar seu populismo eleitoreiro. E como desgraça pouca é bobagem, o leque de a janela de oportunidade para o impeachment do lunático despirocado fica mais estreita à medida que a eleição se aproxima.

Observação: Vale destacar que todos os presidentes que concluíram seus mandatos e disputaram a reeleição (FHC, Lula e Dilma) foram reeleitos. Isso não significa que esse "dogma" não possa ser quebrado, mas, sim, que, se a terceira via não se consolidar, teremos em 2022 uma reedição do pleito plebiscitário de 2018, com a diferença de que em 2018 não faltaram a Bolsonaro cabos eleitorais de peso, como Lula na cadeia, Haddad de bonifrate, a facada do maluco (que livrou o psicopata de participar dos debates), o estelionato eleitoral, o impulsionamento espúrio nas redes sociais, a confiança representada por Paulo Guedes na Economia e Sergio Moro na Justiça.

Sabíamos que Bolsonaro carecia de competência, preparo e envergadura para presidir o que quer que fosse, inclusive carrinho de pipoca em porta de cinema. Mas a perspectiva de ver o país ser governado por um criminoso condenado e preso... Enfim, apostamos nossas fichas e torcemos para a emenda não saísse pior que o soneto, mas diz um ditado que basta fazer planos para ouvir a gargalhada do diabo.

Observação: A expressão "pior a emenda que o soneto" surgiu quando Bocage recebeu de um jovem aspirante a poeta um soneto para correção, e o devolveu sem nenhuma marcação. Perguntado pelo pupilo se não havia nada a ser corrigido, o mestre respondeu que, dada a quantidade de erros, "a emenda ficaria pior que o soneto".

Parafraseando o "enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários", nunca antes na história deste país o Palácio do Governo amargou um inquilino tão indiferente à dor alheia, que tanto despreza a Democracia e o Estado Democrático de Direito e odeia a liberdade de expressão, a imprensa e qualquer um que ouse discordar de sua elevada opinião. 

Do cruel “e daí?” ao “cale a boca”, passando pelo churrasco da morte (que depois fomos instados a acreditar que não passava de uma pilhéria), o Mefistófeles de botequim deixou de ser o palhaço negacionista da “gripezinha” para concorrer como franco-favorito ao título de Monstruosidade Pública Número 1 — embora estufe o peito e se jacte de ter sido eleito "personalidade do ano" pela revista Time.

Nos anos 1970, durante a ditadura militar, Pelé avisou: "os brasileiros não sabem votar". E o tempo demonstrou que ele estava coberto de razão. Da mesma forma que jabuti não sobe em árvore (se está lá, foi enchente ou mão de gente), político não brota em seu gabinete por geração espontânea (se está lá, é porque votaram nele). 

É impossível discordar de Pelé, mas sempre há quem se recuse a ver o que está bem diante de seu nariz — não por falta claridade, mas, sim, de acuidade visual. Para um um cego, tanto faz se a luz estiver acesa ou apagada. E não é preciso ser cientista político para ver que a agenda nacional ocupa, mal e parcamente, o primeiro ano e meio de mandato — no segundo ano, o presidente de turno se preocupa com os pleitos municipais, que servem de ensaio para a disputa presidencial que ocorrerá dois anos depois, e quando se vai ver, os quatro anos se foram e o mandato terminou.

Esperar demais das pessoas é carimbar o passaporte rumo à decepção, e achar que a liturgia do cargo transformaria em estadista um dublê de mau militar e parlamentar medíocre foi ignorar os ensinamentos da fábula do sapo e o escorpião. Governar vai muito além de ganhar eleições, notadamente em tempos de guerra. Parafraseando FHC — que não foi um estadista como manda o figurino, mas, noves fora o episódio lamentável da PEC da Reeleição, foi o presidente "menos pior" que tivemos desde a redemocratização —, “você não lidera dando ordens ao povo, mas fazendo com que o povo siga junto com você”.

Se a maioria apedeuta aprendesse a votar, a minoria pensante não seria obrigada a escolher, a cada eleição, de qual borda da Terra (plana) pular para o inferno. Infelizmente, esse tipo de situação se tornou regra na "Nova República" e, pelo visto, a próxima eleição não será exceção. Com base no que se vê até onde a alcança, a menos que a terceira via se consolide continuaremos navegando rumo a uma borrasca que tem tudo para se tornar a tempestade perfeita.

Continua no próximo capítulo.

quarta-feira, 23 de março de 2022

VALE A PENA VER DE NOVO — A NOVELA DA PETROBRAS

 


Nosso grande estadista em fim de mandato teve mais de três anos para criar mecanismos que minimizassem os impactos do câmbio e da cotação do petróleo no mercado internacional no preço dos combustíveis, mas preferiu criticar as vacinas, os governadores e o STF pelos danos causados por sua incompetência. Agora, ele diz que vai mandar o Ministro de Minas e Energia notificar os postos que não reduzirem os preços (coisa que ele acha que deveria ocorrer depois da mudança de impostos aprovada no Congresso).

O ex-presidente João Figueiredo — que preferia o cheiro do dos cavalos ao cheiro do povo e disse a uma criança que “daria um tiro no coco” se ele fosse criança e seu pai ganhasse salário-mínimo — ameaçava chamar Walter Pires, o linha-dura que ocupava o ministério do Exército na época, para sugerir que poderia dar o golpe. Em 1986, José Sarney levou às ruas milhares de “fiscais do Sarney” e chegou a mandar a Polícia Federal caçar boi gordo no pasto. Bolsonaro, que imita Figueiredo ameaçando golpe militar há tempos, resolve agora imitar Sarney. Já vimos esse filme e sabemos como ele termina.

Quando o preço do petróleo aumenta no mercado internacional, Bolsonaro diz que a alta não pode influir na Petrobras e pressiona a empresa a segurar o preço. Quando a cotação cai, ele afirma que a queda tem que influir na Petrobras e pressiona a empresa a baixar o preço. Mas só os idiotas veem contradição na conduta e nos argumentos do capetão, que são absolutamente coerentes: ele sempre diz e faz o que acha que vai ajudá-lo a se reeleger. Se isso fere a lógica, a Petrobras ou o Brasil, fodam-se a lógica, a Petrobras e o Brasil.

Já o ex-presidiário que aparece nas pesquisas como o queridinho do desmemoriado eleitorado canarinho culpa a privatização da BR Distribuidora (como se o motorista do caminhão que faz o frete determinasse o preço da mercadoria). Se for eleito, disse Lula, “o preço vai ser brasileiro, porque os investimentos são feitos em real”. Ciro Gomes, que carrega a lanterninha das intenções de voto, disse que “chegando ao governo (…) essa política vai mudar: a Petrobras vai cobrar quanto custa para produzir”.

Vale lembrar que o maior erro de Sarney, na edição do famigerado Plano Cruzado, foi tentar controlar a inflação por decreto. Parafraseando o jornalista H.L. Mencken, “todo problema complexo tem uma solução simples e errada”.

Bolsonaro, Lula e Ciro se esqueceram de combinar com os russos (e americanos, europeus, chineses). Se o preço for baixo aqui, ninguém venderá para o Brasil. Como não somos autossuficientes (ao contrário do que afirmam os petralhas), haverá desabastecimento. Gostemos não, obrigar a Petrobras a vender barato trará prejuízos à companhia e aos acionistas — costumeiramente apresentados como figuras satânicas que auferem lucros abusivos e indevidos, mas que são na maioria empresas e cidadãos brasileiros —, e o acionista majoritário da petrolífera é o próprio Brasil.

A “gerentona de araque” — que antes de ingressar na política faliu duas lojinhas de badulaque importados, e isso na época em que a paridade entre o dólar e o real era sopa no mel para esse tipo de comércio — represou o preço dos combustíveis e impôs à Petrobras um rombo de R$ 100 bilhões, que praticamente quebrou a companhia e se traduziu em mais dívida, descontrole fiscal, inflação etc.

A política de paridade com o preço internacional foi criada justamente para blindar a empresa contra governantes intervencionistas e irresponsáveis como Dilma e outros, de modo que o efeito será similar se o governo determinar o congelamento do preço e escrever um cheque para compensar a perda da Petrobras — ou se partir para a renúncia fiscal, conforme foi aprovado no Congresso. São outras soluções simples e erradas.

Lamentavelmente, ainda há no Brasil quem acredita (ou finge que acredita) em soluções mágicas e enxerga combustível fóssil como fator estratégico. Estratégico é educação, não petróleo. Privatizar a Petrobras geraria recursos para fazer o que é realmente importante, sem falar que a desconcentração reduziria o problema que estamos vivendo atualmente.

Enquanto o mundo civilizado investe em energia limpa, se organiza para abandonar um combustível ambientalmente insustentável e se prepara para entrar de vez no século XXI, o Brasil segue discutindo pautas dos anos 1950, dando subsídio (uniforme!) para combustível fóssil e destruindo o meio ambiente.

Pelo visto, só vamos entender o que está acontecendo quando não houver mais comprador para o petróleo. E isso não demora a acontecer.

Com Ricardo Rangel

terça-feira, 21 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL (PARTE II)

 

Albert Einstein dizia que o universo e a estupidez humana são infinitos (mas, no tocante ao universo, ele não estava 100% convencido) e Karl Marx, que a história sempre se repete como tragédia ou farsa. Diante de tanta estupidez, fica mais difícil a cada dia distinguir tragédia de farsa num país em que o passado se harmoniza em toda a sua mediocridade.

Se há um elemento que não se pode subestimar, atualmente, é o limite da estupidez humana. Vivesse no Brasil de hoje e não na França do século XVII, Descartes teria dito “penso, logo desisto” em vez de “penso, logo existo”. Como não há nada mais frustrante do que tentar ver a realidade sob o prisma da lógica, o pensamento cartesiano foi descartado. 

Nas manifestações do último dia sete (e em outros protestos antidemocráticos que aconteceram antes delas), bolsonaristas boçais pugnavam pela volta dos "anos de chumbo" — um passado que a maioria deles jamais conheceu e, portanto, não sabe (ou sabe apenas pelos livros de história) o que foi a ditadura militar implementada pelo golpe de Estado de 1964. Em atenção a essa récua, relembro que a renúncia de Jânio Quadros (em 25 de agosto de 1961) deu azo à malsucedida experiência parlamentarista que resultou na deposição do vice de Jânio,  João Goulart e guindou ao Planalto o marechal Humberto de Alencar Castello Branco

Ao longo dos 21 anos seguintes, outros quatro estrelados presidiram esta banânia — Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Beckmann Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo, nessa ordem. Em 1974, porém, Geisel deu início a um lento processo de reabertura que propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves (em 1995). Mas o fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” do "alemão" e de seu sucessor, nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso.

Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a Presidência pelo PMDB, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo um programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pelo dia 15 de março — data prevista para a posse do primeiro presidente civil da "Nova República". Mas o que deveria ser uma festa da democracia transformou-se em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da cerimônia e faleceu 38 dias e 7 cirurgias depois — em 21 de abril, que, ironicamente, homenageia Tiradentes, o "Mártir da Independência".  

Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara Federal (Ulysses Guimarães) assumir o posto, foi acertado que José Sarney — vice na chapa de Tancredo — seria empossado. E foi o que aconteceu, conforme eu também já comentei em outras oportunidades.

O Brasil polarizado pelo execrável discurso lulista do "nós contra eles" vem reproduzindo uma frase que estava na boca de alguns saudosistas de tempos em que notícias sobre violência e economia em marcha lenta pareciam raras: “Na época dos militares era melhor”, dizem os que sequer tinham nascido e, portanto, ignoram a repressão e a filtragem de notícias negativas à ditadura.

Por alguma razão que escapa ao meu limitado entendimento, jovens apoiadores da tragédia em forma de gente que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto parecem acreditar que no tempo do regime militar o Brasil era mais alentador — ideia que seu "mito" alimenta tecendo elogios aos anos de chumbo. Entre os argumentos mais utilizados por essa ospália está a conquista do "milagre econômico", que teria ocorrido entre 1968 e 1973.

De fato, naquela época o Brasil conseguiu crescer exponencialmente — cerca de 10% ao ano — e atingir, em 1973, uma marca recorde do PIB, que aumentou 14%. O avanço veio acompanhado de uma forte queda de inflação — a taxa medida na época pelo Índice Geral de Preço (IGP) caiu de 25,5% para 15,6% no período.

O que não se explica diante desse número, entretanto, é o fato de o crescimento ter sido muito bom para banqueiros e empresários, mas ruim para os trabalhadores. Para que o plano de crescimento funcionasse, os militares mudaram a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação, levando a perdas reais para a população em geral.

A melhora na atividade econômica se explica pela conjuntura mundial mais favorável, que oferecia crédito externo farto e barato e favorecia a criação de novos postos de emprego no mercado formal e a expansão do consumo interno. Mas o "milagre" se deveu principalmente ao dinheiro proveniente de multinacionais — que encontraram no Brasil um terreno propício para a expansão sob a tutela dos militares — e de empréstimos advindos de fundos internacionais.

Por outro lado, a concentração de renda também aumentou muito naquele período, fazendo com que a desigualdade social conhecesse atingisse patamares nunca antes alcançados, e os altos índices de crescimento do PIB não produziram uma melhora nos indicadores sociais — o índice Gini quase quadruplicou entre 1964 e 1977. E o investimento maciço dos governos militares na industrialização resultou no êxodo rural — segundo o IBGE, apenas 16% da população morava no interior do país em 2010).

Para equilibrar as contas públicas, controlar a inflação e desenvolver o mercado de créditos, a gestão de Castello Branco adotou um ambicioso programa de reformas (Plano de Ação Econômica do Governo) que criou diversos mecanismos de incentivo às exportações, mas foi no governo Médici, com Antonio Delfim Netto à frente do ministério da Fazenda, que o projeto econômico mirou o crescimento rápido, com destaque para indústria automobilística e grandes obras de infraestrutura, como a construção da Ponte Rio-Niterói (que começou em 1969 e foi inaugurada em 1974) e a nunca terminada Rodovia Transamazônica.

No início dos anos 1970, a crise do petróleo, resultante de conflitos entre países membros Opep, elevou o preço do barril de US$ 3 para US$ 11,60, castigando drasticamente países importadores, como era o caso do Brasil, e quebrando o modelo econômico baseado no alto endividamento externo. Como a estabilidade econômica era um argumento essencial para a manutenção do governo militar, os economistas chapa-branca decidiram que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo, ainda que se endividando cada vez mais.

Foi nesse cenário que o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND), mais ousado que o primeiro, investiu especialmente na criação e expansão de empresas estatais. A Petrobrás, por exemplo, ganhou subsidiárias, e a usina hidrelétrica de Itaipu foi construída, visando tornar o país independente da importação de energia, gerar renda através da produção própria e se valer de parte dessa renda para quitar a dívida externa.

Como o imprevisível costuma ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, a crise se prolongou além do previsto e a conta do crescimento baseado em um alto grau de endividamento ficou para a redemocratização. Quando os fardados voltaram para a caserna, em 1984, a dívida externa tupiniquim representava 54% do PIB — vinte anos antes, por ocasião do golpe militar, esse percentual correspondia a 15,7% do PIB. Como não poderia deixar de ser, a inflação disparou, chegando a 223% em 1985 e a 1782% durante o malfadado governo Sarney.

Outro falácia tão escabrosa quanto a de ter acabado com a Lava-Jato porque não existe mais corrupção no governo é a de que não havia corrupção durante a gestão dos militares. No mundo real atual, o sem-número de fatos que estão apurados por investigações que miram Bolsonaro e quatro de seus cinco filhos, as relações promíscuas do clã-presidencial com milicianos e toda sorte de cambalachos descobertos pela CPI do Genocídio falam por si. 

No mundo real dos tempos de antanho, foi durante a ditadura militar que as relações espúrias entre órgãos públicos e interesses privados mais floresceram, tanto porque não havia investigação quanto porque os censores chapa-branca não permitiam a publicação de notícias desfavoráveis ao governo. 

Mas isso é conversa para a próxima postagem. 

sábado, 16 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — SÉTIMA PARTE


Dias após o golpe militar de 31 de março de 1964, uma junta formada pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, pelo general Artur da Costa e Silva e pelo almirante Augusto Rademaker assumiu o poder e decretou o Ato Institucional nº 1, que contava com onze artigos e determinava que o governo militar poderia cassar mandatos legislativos, suspender os direitos políticos (por dez anos) ou afastar do serviço público todo aquele que pudesse ameaçar a segurança nacional.

As eleições indiretas convocadas pelo AI-1 alçaram à Presidência o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que foi sucedido por Costa e Silva. Na sequência, ocuparam o Palácio do Planalto os generais Emílio Garrastazu MédiciErnesto Beckmann Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.

Médici manteve a postura “linha-dura” iniciada em 1968; Geisel, que assumiu em 1974 e governou até 1979, deu início a um processo de abertura (lenta, gradual e segura) que culminou na Lei de Anistia. "Se é vontade do povo brasileiro, eu promoverei a abertura política no Brasil. Mas chegará um tempo em que o povo sentirá saudade do regime militar, pois muitos desses que lideram o fim do regime não estão pensando no bem do povo, mas, sim, em seus próprios interesses", disse o "Alemão", que, pelo visto, sabia das coisas.

João Figueiredo — o "João do Povo", como os marqueteiros chapa-branca de então tentaram, sem êxito, alcunhar o militar casca-grossa — foi incumbido de concluir a transição política. "Estou fazendo uma força desgraçada para ser político, mas não sei se vou me sair bem: no fundo o que gosto mesmo é de clarim e de quartel", disse o presidente que preferia o cheiro dos cavalos ao do povo, e que, perguntado por uma criança o que ele faria se fosse criança e seu pai ganhasse salário-mínimo, respondeu candidamente: “daria um tiro no coco.

Entre 1983 e 1984, milhões de brasileiros saíram às ruas em prol das “Diretas Já” — para presidente da República; os governadores, que eram ”biônicos” (nomeados pelos militares) desde o golpe de 1964, voltaram a ser eleitos pelo voto popular em 1982. No apagar das luzes da gestão de Figueiredo, depois que a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada pelo Congresso, um colégio eleitoral composto por senadores, deputados federais e delegados da assembleias legislativas dos Estados guindou à Presidência Tancredo de Almeida Neves, que foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia de posse e  declarado morto 38 dias e sete cirurgias depois, torando-se uma espécie de Viúva Porcina — aquela que foi sem nunca ter sido. 

Tancredo é tido e havido por muitos como o melhor presidente que o Brasil já teve, embora não seja possível dizer com certeza como o país estaria se ele, e não o oligarca José Sarney — a quem Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial: "Faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor" — tivesse assumido a Presidência. E a gestão do poeta e acadêmico maranhense, autor de Marimbondos de Fogo e um sem-número de contos, crônicas, ensaios e romances, foi bem menos profícua que sua obra literária.

Observação: Vale destacar que o primeiro presidente eleito pelo voto popular desde a Jânio, em 1960, foi o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello, que também entrou para história como o primeiro chefe do Executivo Federal condenado num processo de impeachment.

A gestão de Sarney ― um maiores expoentes da política de cabresto nordestina ― serviu de palco para a promulgação da Constituição de 1988. O então presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães (que dorme com os peixes desde 12 de outubro de 1992, quando o helicóptero em que ele viajava com a mulher, dona Mora, explodiu misteriosamente), reconheceu, durante o discurso de promulgação da "Constituição Cidadã", que ela não era perfeita, o que ela própria confessava ao admitir reformas."

O também nada perfeito mandatário de fancaria (o "mito" que desafia a Lei da Gravidade todas as manhãs, quando desperta nos aposentos presidenciais do Palácio do Alvorada) se refere sim outro também às "quatro linhas da Constituição", talvez por jamais ter lido a Carta que jurou obedecer e defender em 2019, que é composta por 245 artigos e mais de 1,6 mil dispositivos.

Voltando à longa noite de 21 anos da ditadura, o AI-2, baixado em 1965 e, combinado com os dois atos institucionais subsequentes, todos decretados durante a gestão de Castelo Branco, estabeleceu eleições indiretas para presidente e artificializou as ações do Congresso. Sucederam-se muitas campanhas de lideranças políticas civis contra o regime (por conta, sobretudo, da demora em se realizar um novo pleito eleitoral democrático), como a de Carlos Lacerda, que apoiou o golpe em seu início. Ainda assim, o regime não perdeu força; pelo contrário: houve aquilo que os historiadores chamam de “Golpe dentro do Golpe” — um endurecimento um endurecimento ainda maior do regime, imposto pelo famigerado AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do "linha dura" Costa e Silva

Observação: O AI-5 — cuja reedição os sectários do bolsonarismo boçal defendem em suas manifestações — cassou liberdades individuais e respaldou práticas eminentemente ditatoriais. Historiadores afiram que a “ditadura escancarada” resultante desse ato institucional deveu-se a pressões de ações armadas revolucionárias que estavam em curso no país, como a Ação Popular, responsável pelo atentado à bomba no Aeroporto de Guararapes em 1966.

Retomando a narrativa do ponto em que Sarney assumiu a presidência, o processo de reabertura política que, segundo o plano da Aliança Democrática, deveria acontecer sem traumas, iniciou-se com o trauma da doença e a sombra do desastre. O grande desafio do político maranhense (que sempre puxou o saco dos militares) foi resgatar as esperanças dos brasileiros. Foi durante sua gestão que os militares voltaram para os quartéis, os partidos políticos de esquerda saíram da clandestinidade, a imprensa recuperou a liberdade e os sindicados, o direito a greves e manifestações. Foi também durante sua gestão que a tal "Constituição Cidadã" foi gestada e parida — para o bem e para o mal.

Sarney herdou dos governos militares uma inflação desenfreada e uma recessão econômica difícil de mitigar. Visando pôr termo à escalada inflacionária, ele lançou o malsinado Plano Cruzado — no qual as medidas de maior destaque foram o congelamento de preços e salários, a adoção do "gatilho salarial" (reajuste automático dos salários sempre que os índices inflacionários ultrapassassem a marca dos 20% ao mês) e a concessão de um abono salarial de 12% aos assalariados. Inicialmente, houve uma explosão de consumo. Os próprios cidadãos, travestidos de "Fiscais do Sarney", passaram a controlar os preços e denunciar remarcações. O ministro da Fazenda, Dilson Funaro, tornou-se uma das figuras mais populares do país. 

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca termine: o congelamento de preços e a distorção nas margens de lucro das empresas levaram à queda de produção, que levou ao desabastecimento, que levou ao ágio, que levou à volta da inflação, que levou ao... Plano Cruzado II...

... que fica para o próximo capítulo.

terça-feira, 2 de abril de 2024

60º ANIVERSÁRIO DO GOLPE DE `64

 

O golpe de Estado que prefaciou a ditadura militar — aquela que Bolsonaro sempre negou, mas tentou ressuscitar em 2022, e que seu vice classificou de "ditamole" — completou 60 anos no último domingo. O senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República em 1º de abril de 1964, mas episódio entrou para a História com data anterior para evitar associações jocosas com o "dia da mentira". 

Resumindo a ópera em poucas palavras, a renúncia de Jânio e a aversão dos militares a Jango pavimentaram o caminho do golpe, e os subsequentes 21 anos de ditadura deram azo ao surgimento do lulopetismo corrupto e do bolsonarismo boçal (mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). 

Para quem gazeteou as aulas de História, relembro que a Guerra Fria e a Revolução Cubana levaram o sistema político brasileiro do pluralismo moderado ao pluralismo extremamente polarizado, e a situação se agravou com a vitória chapa Jan-Jan (de Jânio e Jango) em 1960. Jânio se elegeu com a promessa de resolver miraculosamente todos os problemas ligados à corrupção e inflação no país, mas, alegando que "forças terríveis" se levantaram contra ele — e apostando que seria reconduzido ao cargo pelo "clamor popular" — despachou Jango para uma missão na China, apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo levando a faixa presidencial.

Depois de esperar horas na base aérea de Cumbica pelas multidões não apareceram — talvez porque um arranjo urdido nos bastidores impediu que o povo soubesse onde ele estava, ou talvez porque o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência — o populista cachaceiro embarcou para Europa, e o Brasil mergulhou na crise provocada pelo veto à promoção do "vice comunista" a titular.

Na qualidade de presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli assumiu a chefia do Executivo, mas uma junta provisória formada pelos três ministros militares governou o país até 8 de setembro, quando foi implantado o sistema parlamentarista. Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, Jango foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. 

Curiosidades1) Dali a 24 anos, o primeiro-ministro de Jango se tornaria o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) Em 1962, Jânio concorreu ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Adhemar de Barros e só voltou a disputar um cargo público em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique e o petista Eduardo Suplicy e se elegeu prefeito da capital paulista.

Jango só assumiu o posto a que tinha direito desde a renúncia de Jânio depois que o referendo de 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo, mas as tensões se intensificaram quando ele declarou que a reforma agrária era uma questão de honra em seu mandato. Embora não houvesse a menor possibilidade de uma vitória comunista — nem pela via reformista, nem pela luta armada —, parte da elite brasileira bateu às portas dos quartéis, e os militares atenderam prontamente (até porque a doutrina que aprendiam na caserna era a do Ocidente x Pacto de Varsóvia).

Quando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade escancarou o apoio civil ao golpe, o Congresso, ameaçado de fechamento, chancelou a derrubada de Jango e a "eleição" do então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas — o marechal Castello Branco —, que deixou o Planalto em 15 de março de 1967 e morreu quatro meses depois, vítima de um acidente de avião no Ceará. Outros quatro generais-ditadores — Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo , se revezaram no poder até 1985, num jogo um jogo de cartas marcadas em que o partido de oposição (MDB) era meramente figurativo. 

Observação: Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe achando que os militares voltariam para os quartéis em 1965, quando haveria novas eleições e Juscelino (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador liberal, democrata) disputariam a Presidência. Mas eles não demoram a perceber que os militares, picados pela mosca azul, tencionavam se perpetuar no poder. 
 
A dança das cadeiras dos fardados terminou com a eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, que reascendeu a chama da esperança no coração de 130 milhões de brasileiros. Mas a alegria durou pouco: por uma trapaça do destino, o presidente eleito baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e bateu as botas 38 dias e 7 cirurgias depois, deixando de herança um neto que envergonhou o país e um vice que se tornou pai e avô do Centrão
O resto é história recente. 
 
Em 1989, já sob a égide da Constituição Cidadã, os brasileiros voltaram às urnas (depois de um jejum de 29 anos) para escolher seu presidente. Entre os 22 postulantes havia políticos do quilate de Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes e aberrações como Enéas Carneiro, Livia Maria Pio e Sílvio Santos, mas o eleitor tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, escalou Collor (com 30,5% dos votos) e Lula (com 17,2%) para disputar o segundo turno, quando então o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo por 53% a 47%.
 
Durante a campanha, Collor prometeu alvejar o "tigre da inflação" com uma "bala de prata". Eleito, apertou o gatilho um dia antes da posse ao pedir a Sarney que decretasse feriado bancário para que o mercado se adequasse ao conjunto de medidas econômicas mais radical que o país já amargou. Além de congelar preços e salários — a exemplo dos planos Cruzado, Cruzado II e Verão, editados durante o governo Sarney—, o Plano Collor bloqueou todo o dinheiro depositado nos bancos e aplicado no mercado financeiro até o limite de Cr$ 50 mil. Como resultado, o PIB encolheu 4,5% e o número de falências, infartos e suicídios teve um aumento significativo.
 
Plano Collor II aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros), mas a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real a inflação baixou dos 2.000% a.a. para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1992, quando o
 Rei-Sol, autoritário como poucos e corrupto como muitos, foi chutado do Planalto pela porta dos fundos
 
Observação: Ciente de que sua deposição eram favas contadas, Collor renunciou às vésperas do julgamento de seu impeachment — que teve como estopim uma entrevista concedida por Pedro Collor à revista VEJA —, mas o Senado seguiu adiante e o condenou (por 76 votos a 3) à perda do cargo e suspendeu seus direitos políticos por 8 anos.   
 
Com a deposição do "Roxinho", o vice Itamar Franco passou a titular e nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda. Impulsionado pelo sucesso do Plano Real, o tucano se elegeu presidente em 1994, comprou a PEC da reeleição em 1997 e se reelegeu 1998. Como não lhe restavam novos coelhos para tirar da velha cartola, FHC não conseguiu eleger José Serra seu sucessor.A
 vitória de Lula em 2002 marcou o início à era lulopetista, que só foi interrompida em 2016, com o impeachment de Dilma

Com a deposição da gerentona de araque, seu vice foi promovido a titular e se mudou para a residência oficial da Presidência, mas voltou semanas depois para o Jaburu, porque, segundo ele, o Palácio da Alvorada é assombrado. Assim, Michel Temer se tornou o primeiro e único caso documentado de vampiro que tem medo de fantasma. 
 
A troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba: após 13 anos de garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma anormal incapaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises pareceu um refrigério. Demais disso, o vampiro do Jaburu
 conseguiu reduzir a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista, mas o ministério de notáveis que prometeu se revelou uma notável agremiação de corruptos, e quando sua conversa de alcova com Joesley Batista veio a público, o sonho de entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos" virou o pesadelo de vir a ser "o primeiro presidente no exercício do mandato denunciado por crime comum". 
 
Observação: A tropa de choque capitaneada por Carlos Marun contratou um coral de 251 marafonas para entoar a marcha fúnebre enquanto a segunda "flechada de Janot" era sepultada na Câmara, mas Temer terminou seu mandato-tampão como um "pato manco" — que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons lhes servem o café frio. 
 
Em 2018, uma extraordinária conjunção de fatores empurrou para o Planalto um combo de mau militar e parlamentar medíocre que atribuiu a vitória a uma "cagada do bem". Quatro anos depois, derrotado nas urnas, ele exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa". Investigado em sete inquéritos, inelegível até 2030 e na bica de ver o sol nascer quadrado, esse dejeto da escória da raça humana aguarda a primeira condenação posando de perseguido. 
 
A retomada democrática instituída em 1985 com a eleição do presidente "Viúva Porcina" (que foi sem nunca ter sido) e sacramentada em 1988 pela promulgação da Constituição Cidadã não exorcizou os fantasmas da ditadura. No último dia 29, o STF começou a julgar em plenário virtual os limites da atuação das FFAA estabelecidos no Art. 142 da CF (o ministro Luiz Fux, relator da encrenca, já votou pelo sepultamento da tese de que os fardados são o "poder moderador" da República).

Para evitar atritos com as Forças Armadas, Lula vetou qualquer ação alusiva ao golpe de '64, mas sete dos 38 ministros foram às redes sociais prestar homenagens aos "desaparecidos" dos anos de chumbo
Lobotomizados pela polarização semeada pelo "nós contra eles" do xamã petista e estrumada pela extrema-direita radical que saiu do armário durante a campanha de 2018, os devotos do bolsonarismo, vítimas da pior espécie de cegueira, consideram seu "mito" um ex-presidente de mostruário perseguido injustamente por "Xandão", como deixou claro a manifestação de 25 de fevereiro passado.

Observação: Claro que muita gente reza (ou finge rezar) por essa cartilha devido a interesses escusos, da mesma forma e pelos mesmos motivos que muita gente finge acreditar que Lula é a alma viva mais honesta do Universo e que sua prisão "foi uma armação, um dos maiores erros judiciários da história do país". Mas isso é outra conversa. 
 
Em face de todo o exposto, não há o que celebrar em 31 de março (nem em 1 de abril, a não ser o "dia da mentira"). Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é permitir que ódios do passado envenenem (ainda mais) o presente e destruam o futuro.